07/12/13

Entrevista de Paola Berenstein Jacques a Francesco Careri

artigo de Paola Berenstein Jacques
Paola: O seu livro, “Walkscapes, o andar como prática estética”, depois de ter sido publicado em espanhol, inglês e italiano vai sair em breve em português (Barcelona, Editorial Gustavo Gili, 2013). Na minha leitura, o texto deve muito e se refere sobretudo ao que você comenta só no final do livro: as caminhadas do grupo Stalker. Em particular a volta de Roma (Stalker attraverso i território attuali), de 1995, já faz muito tempo mas acho importante para começar a conversa, você pode falar um pouco mais dessa caminhada iniciática?

Francesco: Essa é uma pergunta muito fácil, eu esperava algo bem mais difícil para responder [risos]. No livro esta caminhada é a ação final, depois de Robert Smithson, depois dos dadaístas, dos situacionistas, etc, eu coloquei isso no livro não exatamente para glorificar o grupo Stalker mas para prestar uma homenagem. Se não tivesse havido esta caminhada eu nunca teria escrito este livro!

Paola: Isso fica claro, ao menos para mim ficou claro, no final do livro...

Francesco: Mesmo se quando eu escrevi o livro nós já estivéssemos em outra etapa com Stalker, com o projeto Campo Boario, um trabalho mais de interação com a cidade multicultural, já não era tanto uma questão de caminhar mas de habitar os lugares intersticiais. Essa caminhada hoje já é muito conhecida[1].

Paola: Mas no Brasil ainda não é tão conhecida assim, por isso acho que talvez seja importante falar nela para explicar o livro...


Francesco: Sim, claro, eu entendo, o livro saiu em 2002 (1a edição em espanhol/inglês) e a caminhada foi em 1995, são 7 anos, quando eu fiz a caminhada eu não tinha ainda claro todo o conteúdo do livro mas uma boa parte, então eu tive tempo para pensar muito sobre os temas que já estavam abertos quando fizemos a caminhada, seja do ponto de vista da história dos situacionistas, seja do lado dos artistas da Land Art. A caminhada surgiu de um desejo de conhecermos o que existia do outro lado, além da cidade que nos contavam os nossos professores, etc. Eu já tinha terminado o curso de Arquitetura há dois anos mas os outros ainda eram estudantes, mesmo se não eram todos, os “Stalkers”, estudantes de arquitetura. Mas era uma coisa entre jovens recém diplomados e estudantes. Nós percebemos que nossos professores falavam de uma cidade que não era aquela e nós queríamos explorar esse outro lado. Nós éramos como uma esponja absorvente, uma esponja cheia de leituras situacionistas. Eu já estava muito interessado também por Smithson, sobretudo, e Richard Long etc[2], e por isso eu já queria fazer um círculo em torno de Roma, fazer uma figura, para mim era importante fechar o círculo e fazer uma figura e não simplesmente se perder, digamos, ao acaso. A ideia da caminhada surgiu depois de 2 anos da prática de jardins ilegais, impossíveis, em 1993 e 1994, que nós fazíamos nos lugares que chamávamos de amnésias urbanas, espaços esquecidos, atrás dos muros, etc.

Paola : Mas dentro da cidade? Como alguns “jardins partagés”[3] de Paris?

Francesco: Sim, dentro da cidade, mas não como os “jardins partagées” não eram exatamente jardins nem hortas, eram espaços abandonados, selvagens, as margens do rio, onde chamávamos artistas e arquitetos, sobretudo estudantes de arquitetura, para habitar durante 1 semana, não eram hortas nesses espaços como os “jardins partagés”, eram instalações artísticas, digamos, mas para serem habitadas. A partir daí descobrimos que existia um sistema de vazios, e durante 1 ano, nós íamos, a cada final de semana, explorar esses espaços, essas zonas[4], para tentar descobrir se havia um tipo de passagem entre elas, e nós descobrimos que sempre tinha uma passagem, e que poderíamos conhecer esse grande vazio urbano através de um percurso, daí surgiu a ideia de fazer a caminhada em volta de Roma, que nos mudou completamente o ponto de vista, foi como se o nossa cartografia mental se abrisse de repente, foram desenhadas uma quantidade enorme de zonas que estavam vazias, que não existiam nos nossos mapas mentais, e assim compreendemos que poderiam ver a cidade desse ponto de vista, nômade, que muda, que está fora da cidade, começamos a fazer dicotomias do tipo cheios/vazios, nômades/sedentários, como Deleuze, lisos/estriados, e assim fizemos essa cartografia, que está no livro, o Planisfero Roma, que mostra a cidade como um arquipélago de ilhas cheias que se desenha sobre um sistema de mares, no plural, como existem diferentes bairros, existem também diferentes tipos de zonas, cada uma com sua própria identidade, mutante, claro. Queríamos mostrar isso, que era possível fazer uma caminhada dessa forma, que era possível viver de outra forma a cidade, era como uma construção de situações[5], construir uma outra situação, uma outra forma de habitar, outro ponto de vista.

Paola: Se eu bem entendi vocês fizeram um trabalho prévio de prospecção para identificar esses espaços,  1 ano de preparação nos finais de semana, eu queria saber um pouco mais dessa preparação para a caminhada, vocês marcaram esses caminhos, os percursos, antes, em algum mapa ou foto aérea? E quando vocês foram caminhar,  vocês tinham esse mapa com vocês? Vocês fizeram esse trabalho antes para ver por onde dava para passar ou não, sobretudo para ver quais eram essas zonas a atravessar, os territórios atuais, como vcs falavam... Você disse que vocês fizeram um círculo em torno de Roma, isso já existia desenhado antes?

Francesco: Não, só havia uma ideia de fazer um percurso em torno da cidade, e tínhamos uma ideia da distância com relação ao centro da cidade, quer dizer, sabíamos que era uma área circular entre a Cintura ferroviaria (ferrovias em torno da cidade), como a Petite ceinture em Paris, e o Grande Raccordo Anulare, a grande estrada que faz o contorno de Roma, um raio a 10 kms do centro, nós estávamos por volta de 7 kms a partir do centro, mais ou menos, porque na verdade a figura que apareceu não era exatamente um círculo, foi tudo que aconteceu depois de ter decidido de fazer um círculo, não foi exatamente fazer um círculo mas foi mais como ir em torno de... Não eram figuras como as de Richard Long, não as desenhamos antes no mapa para depois caminhar sobre elas. Mas sim, nós estudamos os mapas mas eu diria que não os levamos conosco, quando fizemos o trabalho de prospecção víamos mais as passagens e as grandes distâncias, era mais para compreender se seria possível de fazer a caminhada, a ideia era ver o que poderíamos fazer com as barreiras, às vezes cortávamos as cercas com tesouras, entrávamos em espaços privados, não poderíamos fazer de outra forma, não queríamos voltar, então era para compreender o comportamento que deveríamos ter no momento de fazer o Tour de Roma, foram ensaios não cartográficos mas experimentais, para saber como nos comportaríamos, como falaríamos com as pessoas. Foram ensaios. A cartografia mesmo só veio depois, não desenhamos antes, não seguimos um desenho.

Paola: Durante a caminhada, vocês fazem registros, cadernos de bordo, ou algo assim? E depois, como vocês fazem a restituição do trabalho, a transmissão da experiência? Vocês fazem imagens, fotos, vídeos? Depois então vocês fazem uma cartografia, você já disse que vocês fizeram a cartografia depois. Antes de ir, vocês já pensavam que iam fazer um tipo de performance, vocês já pensavam antes que iriam fazer um trabalho artístico, ou isso só veio depois também?

Francesco: Não, nós já sabíamos que estávamos fazendo uma obra de arte. Era intencional, mas não era fazer uma obra de arte no sentido negativo que às vezes se dá, quer dizer, de fazer uma obra para mostrar depois, tínhamos o sentimento que fazíamos algo de importante na história da arte, ou na nossa história da arte, da nossa experiência de arte, quer dizer, vivemos uma sensação de frescor, que era a mesma sensação que tiveram os dadaístas, os situacionistas, quando eles descobriram que isso era possível. Então, nós sabíamos muito bem o que estávamos fazemos, estávamos bem conscientes. Por isso que nós demos essa importância, escrevemos um manifesto para explicar, fizemos a cartografia, compreendemos que precisávamos de uma forma de representá-la por exemplo, fizemos várias coisas, cada um tomava suas notas. Isso, a ideia de como representar, não estava preparado antes, cada um fazia de sua própria maneira, alguns faziam fotos panorâmicas, outros fotografavam as pessoas que caminhavam, ou fotografaram as paisagens, os objetos abandonados, tinham os que escreviam sobre as pequenas coisas, mas a forma de representar a experiência mais clara foi a forma que Aldo Innocenzi fez seu vídeo. Ele tinha uma câmera de vídeo com ele mas não olhava nunca pelo visor, ele levou a câmera na sua mão, como se fosse um amigo, um outro personagem que caminhava conosco. O filme não é muito visível, é todo o tempo em movimento, esteticamente é um pouco forte. Mas nós não queríamos interpretar o território, nós dizíamos que o território deveria se auto-representar, e a única forma de fazer essa auto-representação seria representá-lo não intencionalmente, sem olhar na câmera, mas deixar um objeto, uma ferramenta, que poderia dar a possibilidade do território se representar, tínhamos um grande respeito, um sentimento do sagrado, quando fizemos essa primeira caminhada, não tocávamos em nada, não pegávamos nada para levar conosco, deixávamos tudo como estava, só éramos testemunhas do que nos revelava esse momento de caminhada. Depois eu fiz algumas coisas que chamei de celebrações, pequenas performances para marcar o território, mas eram quase sacrilégios, profanações.

Paola: Você fez isso durante a caminhada?

Francesco: Sim, durante, mas fiz depois também, durante o primeiro ano, na verdade eu continuo a fazer às vezes...

Paola: Queria entender como um grupo de estudantes de arquitetura e jovens arquitetos, em princípio interessados em caminhadas e na cidade, que reagiam ao ensino distanciado de seus professores, acabaram entrando no mercado internacional de arte contemporânea. Depois dessa caminhada vocês participaram de várias exposições, bienais de arte contemporânea, etc. Esse trabalho, o Tour de Roma, foi comprado pelo FNAC francês (Fonds national d'art contemporain), que material eles compraram? A cartografia, os registros, os relatos? Vocês já tinham feito a experiência, o que foi vendido como obra neste caso?

Francesco: Havia todo um problema sobre a representação, como representar, já falei disso, da cartografia, o Planisfero Roma, o vídeo de Aldo, as belas imagens de Romolo e Giovanna, o jornal íntimo de Lorenzo, tínhamos vários materiais que eram testemunhas do que fizemos que poderiam ser vendidos, comprados pelo mercado de arte[6]. Mas quando fizemos isso nós nunca tínhamos participado de exposições, nunca tínhamos sido chamados por uma galeria de arte, um museu, um crítico de arte, nada disso, nós estávamos completamente fora do sistema, do mercado de arte. A única coisa que tínhamos feito eram os jardins quando nós chamávamos alguns artistas para habitá-los. O fato de entrar no sistema de arte aconteceu dois meses depois da caminhada de Roma, uma galeria nos ligou, uma crítica de arte, Emanuela de Cecco, que leu um artigo no jornal sobre a caminhada, e nos chamou para um exposição em Milão, Mappe, e lá nós fizemos a segunda caminhada, em Milão, e entramos em contato com outros artistas, e passamos a ser mais conhecidos e convidados pelo meio da arte contemporânea, mas sempre ficamos meio de fora, sobretudo do mercado, nós nunca vendemos nada para coleções privadas, só vendemos para coleções públicas, na França e na Itália, só vendemos umas três coisas ao longo de 20 anos. Nós não acreditávamos muito nisso, fizemos um pouco como uma “mise-en-scène”, aceitávamos, isso nos dava dinheiro para comprar material para outros projetos, precisávamos de dinheiro e por isso vendemos. Hoje acho que foi bom ter feito isso, essa experiência para mim é muito importante e acho bom que isso esteja preservado em algum lugar, que o Estado francês a preserve.

Paola: Mas o que o Estado francês preserva? As fotos? O vídeo? A cartografia? O mapa?

Francesco: Sim, o mapa, que nós refizemos para eles, o verdadeiro mapa, a cartografia original da experiência, a que fizemos logo depois da caminhada, nós nunca vendemos na verdade, nós fizemos para eles um mapa maior, mais “performático” digamos, como disse, era uma certa “mise-en-scène”, depois tinha uma instalação, uma projeção do vídeo com a sobreposição da projeção das fotos, uma mistura, tinha também um sistema de tochas, já que estávamos no escuro, para olhar o mapa, isso é a “obra” vendida para o governo francês, que não é a experiência que nós fizemos, é claramente uma outra coisa. Nós aceitamos de fazer porquê precisámos de dinheiro, é só isso... [risos]

Paola: No livro você defende o caminhar como uma prática estética, uma forma de arte. Como você sabe muito bem, dos dadaístas aos situacionistas, essa ação de percorrer vinha de uma série de críticas, entre elas, a crítica a uma forma mercantil de representação artística, relacionado ao mercado de arte da época, por isso eles falavam em anti-arte também. Agora nós vemos o contrário disso, ao lugar de uma dessacralização do objeto, da obra de arte, nós vemos vários artistas hoje que fazem a sacralização da própria caminhada como obra de arte, e várias dessas caminhadas são elas próprias espetaculares, já surgem espetacularizadas, seus “produtos” artísticos são pensados de antemão e valem mais que a própria experiência, assim tem algo importante da crítica que se perde, o que você acha disso? Dessas caminhadas que entraram na moda, que não tem mais ligação com qualquer tipo de crítica?

Francesco: Eu acho que quando nós fizemos essa caminhada nós estávamos completamente no espírito da anti-arte, para nós a questão era fazer uma experiência, uma experiência estética - não digo estetizante – mas uma experiência dentro de um campo que não é exatamente o campo científico mas que tem relação com o campo da arte. Mesmo se entre nós havia também um cientista... Quando fizemos estávamos na “trip” anti-espetacular dos letristas e situacionistas. Para mim a passagem, quando a caminhada passa a ser uma forma de arte por si mesma, aconteceu com o Land-Art, foram os land-artistas que reconfiguraram isso dentro da história da arte, por isso tem toda a questão do Land-Walk no livro. Eu acho que tem uma necessidade de representar, de representação, que os dadaístas e os situacionistas não quiseram fazer, apesar da Naked City, de alguns mapas, mas são poucos objetos, são sobretudo relatos, narrações mais literárias, eles contavam as derivas, mas do ponto de vista da imagem, eles não fizeram, não produziram, quase nada.

Paola: Mas isso era algo consciente, completamente voluntário...

Francesco: Claro, eles eram grandes artistas, sabiam fazer pinturas, esculturas, eles não quiseram fazer “produtos”, queriam deixar somente a experiência “pura”, mas depois houve uma dessacralização disso, nos anos 1960, já Vito Acconci, eu diria, quando isso tudo vira um tipo de performance artística feita por artistas que estão completamente dentro do sistema da arte, mesmo se eles fazem experiências, é uma forma de ficar dentro e fora, nas margens, não é mais pintura, nem escultura, têm que se reinventar outra coisa, para contar a experiência, a caminhada. Isso tudo virou moda sim, por isso digo isso no epílogo do livro (ver no final deste número), que eu acho cada vez menos interessante, mas não quero ser o crítico dos artistas que caminham, às vezes tem alguns que fazem algo interessante...

Paola: E o grupo de vocês, Stalker, terminou? Virou Osservatorio Nomade e agora Laboratorio Arti Civiche? Agora você está na Universidade (Roma Tre), você usa a caminhada como, mesmo se seu sei que você não gosta dessa palavra, um método de trabalho – como já lhe disse, pensemos a etimologia de método como caminho, como caminhos, caminhos exploratórios – com os estudantes, como método de ensino[7]. A caminhada surgiu como uma reação a seus professores do curso de Arquitetura da época e agora virou um método de aprendizagem. Você fez um curso inteiro caminhando... A partir da sua experiência didática de hoje, você não acha que o que você chama de “Transurbância”, poderia ser vista como uma metodologia experimental e exploratória dos espaços nômades dentro das cidades? Como você sabe bem, o próprio Debord considerava a deriva uma técnica...

Francesco: Deixo a questão de se o Stalker existe ainda ou não para o final, ok? Prefiro começar pelo ensinar caminhando ou ensinar o caminhar aos outros, aos estudantes, como uma metodologia como você diz, palavra que agora uso depois que você me explicou a etimologia[8]... É verdade! [risos]

Paola: [risos] Você perdeu o medo então de usar a palavra?

Francesco: [risos] E eu te cito sempre quando falo isso... Mas é tanto metodologia quanto uma matéria de ensino. Quando eu entrei para a Universidade eu me perguntei: o que posso ensinar agora? O que eu posso dar? E decidi fazer aquilo que tinha mais me ensinado, que era sair dos caminhos já conhecidos e fazer experiências, é o que você diz no seu livro (Elogio aos Errantes, Salvador, EDUFBA, 2012), a questão da experiência, quando você cita Agamben e Benjamin, sobre a possibilidade ou não de fazer as experiências, efetivamente temos hoje poucas pessoas que lhe dão a possibilidade de fazer experiências, eu queria fazer isso mais que tudo. Por isso meu curso tem vários estudantes a cada ano, eles se falam entre eles, eu não sou nem capaz de explica-los porquê faço isso, não acho que eles entendam tudo que está por trás da caminhada que eles fazem, a parte teórica é muito pouco desenvolvida, não dou uma aula antes de ir caminhar, já os levo imediatamente para caminhar, não na cidade “normal”,  a experiência que fazemos não é de caminhar nas calçadas, é de caminhar nos espaços que eles não conhecem, que eles não esperavam...

Paola: Você ainda chama esses espaços, como na época da caminhada Stalker, de “territórios atuais” ou você os chama de outro nome?

Francesco: Não, eu já passei disso, dessa questão de dar nomes, de fazer um relato mais intelectual sobre isso, para mim o importante é ir por aqui ou ir por lá e depois explico um pouco sobre que eles viram. É um pouco o que você fala de duas formas de experiência, Erfahung e... não me lembro o outro nome...

Paola: Erlebnis, são os dois tipos de experiência em Walter Benjamin, a experiência vivida e Erfahung, a experiência transmitida[9]...

Francesco: Isso, nós fazemos mais a primeira, da Erfahung são poucos os estudantes que conseguem fazer, que são conscientes disso que eles estão fazendo... Mas para mim, que eles façam o primeiro passo, uma experiência pura, é fundamental, acho que para eles também é fundamental. Com relação ao ensino, eu me sinto nos últimos anos como um pastor que leva seu rebanho [risos], é sério, me sinto o velho “Piccio” (apelido de Francesco) que leva seu rebanho [...] Gosto muito quando no final do curso eu os deixo sozinhos, eles ficam felizes em fazer a experiência sem eu estar, mais no início eu tenho que conduzí-los um pouco... É isso, dar lhes a possibilidade de fazer uma experiência de um espaço outro que o conhecido, já entendemos qual é o tipo de experiência que faço... Como metodologia, por exemplo, o trabalho que fizemos em Salvador ou em São Paulo, ou o que eu fiz agora em Nairobi, o caminhar como metodologia para explorar espaços da cidade informal, digamos, isso eu acho que é fundamental também, a visão de dentro do labirinto é imprescindível se queremos compreender o labirinto, podemos também fazer em helicóptero... Em São Paulo eu fiz o Tour de helicóptero [risos]...

Paola: [risos] Você e o Rem Koolhaas, que quando viu São Paulo do helicóptero disse: “Lagos é aqui”...

Francesco: Visto do alto é mesmo tudo a mesma coisa, Bangkok, Lagos, Nairobi... [risos] Quando eu fiz essas experiências não foi com os estudantes, foi com o Laboratorio Arti Civiche, que é constituído de antigos estudantes deste curso que quiseram continuar a pesquisa comigo... Usamos então a caminhada como metodologia para se dar a possibilidade do acaso, de tropeçar em algum lugar, de ter um tipo de ancoragem com a realidade, com alguém, com um “Stalker” (ver nota 4) local para nos fazer compreender melhor, como os bares em Vila Paraíso, Jorge e sua família, por exemplo, como já escrevemos na Redobra[10], é um instrumento, tem toda a metáfora do labirinto, do Minotauro, do medo, e a caminhada como instrumento para diminuir o medo, a apreensão, você está sempre em um estado de apreensão mas não tão aterrorizado, não é mais o medo que paralisa... Você poderia pensar em pacificação, entendo seu receio, mas não é para pacificar, seria somente pacificar você mesmo com isso, para ultrapassar as barreiras mediáticas que envolvem esses lugares, para isso é preciso diminuir o nível de medo, seria interessante se conseguíssemos fazer isso com os outros, os moradores do entorno por exemplo... (corte, repetição...)

Paola: Você já falou bastante dessa questão do medo e da apreensão nas duas vezes em que esteve conosco em Salvador, e no final do livro, no epílogo, você também fala do medo, você associa a questão da apreensão da cidade ao medo, apreender no sentido de ter medo, medo de caminhar pela cidade, eu percebi na releitura do seu livro que essa sua preocupação não é nova, eu vi por exemplo que no documento para a imprensa do Tour de Roma vocês citavam Hoderlin: “Mas é onde há o perigo que vai aparecer o que salva”, isso quer dizer que o que vocês chamavam de “territórios atuais”, que vocês exploraram nessa caminhada, eram onde vocês tinham medo de ir? Isso aproximaria ainda mais esses territórios romanos da zona mutante do filme  Stalker de Tarkovsky, que deu nome ao grupo, onde todos tinham medo de ir...

Francesco:  Sim, claro, é um pouco como nas antigas cartas dos exploradores da África, onde tinham as áreas que eles marcavam com a frase hic sunt leones (aqui têm leões). Quer dizer, ninguém vai lá, ninguém sabe o que acontece ali, é perigoso.

Paola: Mas têm sempre pessoas que vivem nesses espaços considerados perigosos...

Francesco: Sim, talvez canibais, ou os neo-canibais [risos]. O desconhecido traz consigo uma sensação de apreensão no sentido de medo, por isso a frase de Holderlin, “Dove c'è pericolo cresce anche ciò che salva”, tem sempre essa possibilidade de sair, uma chave para sair...

Paola: Mas talvez a chave mais clara seja de entrar, ir lá para conhecer as pessoas que moram nesses lugares... Quando você passa a conhecer as pessoas do lugar não há mais medo...

Francesco: Sim, é exatamente isso, foi isso que fizemos na Bahia, por exemplo.

Paola: No epílogo do livro (publicado no final deste número), você fala pela primeira vez do Outro, 10 anos depois da 1a publicação, no livro todo não há o Outro, os vários outros desses espaços, eles só aparecem no epílogo...

Francesco: Sim, é verdade.

Paola: E você diz também, o que me surpreendeu, que se fosse escrever outro livro, seria um Stopscapes, sobre o parar, não mais sobre o caminhar, e aí lembrei de dois relatos de experiências do parar no número passado dessa revista, “Deriva parada” (Janaina Bechler) e “Chão das cidades” (Andrea Maciel). São experiências de ficar parado. Alessia de Biase propôs também uma ideia de “Insistir um território”, exercícios de insistência urbana... Aí você se aproximaria também de questões etnográficas, antropológicas talvez, qual a sua relação com a etnografia?

Francesco: Aiuto (preciso de ajuda...). [risos]

Paola: Mas essa questão etnográfica perpassa a história que você conta do caminhar, nos surrealistas, por exemplo, o James Clifford (historiador) chamou o que eles faziam de surrealismo etnográfico...

Francesco: Bom, a questão do Outro. Não exatamente do ponto de vista etnográfico, mas ético e político, que não seja exatamente religioso, porque agora me falam que eu falo muito da Bíblia, Caim e Abel, eles me vêem um pouco assim, como um...

Paola: Um padre? [risos]

Francesco: [muitos risos]. Por exemplo, o Campo Boario[11], já era uma experiência que fazíamos na época que escrevi o livro (que na verdade foi minha tese de doutorado), mas eu não falei disso, que já era uma experiência mais do parar do que do caminhar, mas no livro eu só falo do caminhar. Talvez eu só tenha entendido o trabalho no Campo Boario muito tempo depois de ter feito... Na época eu sofri muito, eu dizia a Lorenzo que precisávamos continuar a caminhar, que não devíamos parar, eu sofria muito...

Paola: Por estar parado?

Francesco: Sim, não entendia bem o que estávamos fazendo, tinha a questão dos kurdos em Roma, achava que tínhamos que fazer isso mas eu queria continuar a caminhar... Não queria parar. Só em 2007, quando eu fiz o trabalho com os ciganos, que eu percebi que o Outro existe, que ele é muito diferente de você, que ele não quer ser como você, os ciganos são claramente diferentes... Foi aí que compreendi a existência do Outro, normalmente pensamos um outro que é pacificado, que podemos entrar em acordo, com os ciganos era impossível, eles nos escapam. E vão continuar escapando. A única forma de sobrevivência deles é de nos escapar, é assim. Mas é algo difícil de aceitar, nós tentamos sempre fazer algo pelo outro... Aí nos fizemos etnografia sim, como quando com meus estudantes, de Projeto Urbano, nós fomos ao acampamento dos ciganos para fazer cartografias familiares, para tentar entender as redes das famílias, com as casas eram colocavam umas do lado das outras... E aí na Universidade falaram que nós estávamos fazendo etnografia, que não era urbanismo, para mim era a única maneira de compreender o espaço. Mas eu não aprofundei o discurso antropológico sobre o Outro, era algo que gostaria de fazer, por exemplo. Se eu for mesmo fazer um livro sobre o Stopscapes...

Paola: Quando vocês param, penso tanto na experiência de Campo Boario (o Pranzo Boario) como em Salvador (Macarronada/Feijoada), vocês param para comer juntos, tem um deslocamento metodológico do caminhar para o comer...

Francesco: Quem falou isso foi o Piero Zanini, do LAA de Paris, que a nossa metodologia é de caminhar, parar e comer juntos... E, de fato, isso faz parte.

Paola: Digo isso porque me parece que há uma ideia de ocupar, habitar um espaço, mesmo que de forma temporária, ao menos para comer... Quando você trabalhou com os ciganos, vocês fizeram uma casa[12] para eles, você me disse que, para a surpresa de vocês, eles disseram que não queriam mais ser nômades, eles queriam se fixar... Vocês pararam mas eles também queriam parar... A minha questão seria se não há mais nômades hoje ou quem seriam os nômades de hoje?

Francesco: Eu encontrei no Chile, ciganos nômades, comprei uma tenda deles... Os ciganos de Roma são orgulhosos de serem nômades mas somos nós que não os damos mais a possibilidade de serem nômades. Mas eu acho que eles podem ser ciganos morando numa casa, quer dizer, ter sua cultura nômade dentro de si, no sangue... Não queria entrar muito na questão dos ciganos mas o problema é que não damos a possibilidade nem para que eles fiquem em movimento nem para que tenham uma casa, os colocamos em acampamentos feito de contaîners, ou em acampamentos do tipo favela, a favela para mim é muito mais interessante como auto-organização de seu próprio espaço... Voltando a questão, onde estão os nômades? No Chile por exemplo eles tem o direito de circular, de serem nômades, como era aqui nos anos 1950/60, eles podem se mudar, não enviar os filhos para escola, eles têm a possibilidade de viver de outra forma, mas aqui na Europa não, não existe mais... Onde estão os nômades? Isso seria um novo livro...

Paola: Perguntei isso porque achava contraditória a casa que vocês fizeram para os ciganos, parecia o contrário de tudo que vocês tinham feito antes...

Francesco: Sim. [silêncio]

Paola: Mas talvez seja só o encontro com o Outro não mitificado, não idealizado, pois quando você encontra finalmente os nômades eles lhe pedem uma casa...

Francesco: Essa é uma questão que para mim ainda está completamente em aberto, por isso não consegui fazer um livro sobre os ciganos, e sobre a casa que construímos para eles, os ciganos continuam a ser uma grande questão para mim. Quanto mais os estudo - eu estudei bastante, li vários antropólogos etc - mais eles me escapam, quanto mais os conheço mais eles me escapam... Se abre um universo muito complexo, um campo imenso, para se compreender, eu não consegui chegar a conclusão, a questão de se eles são nômades ou não fica em aberto... Em todo caso, nômades ou não, os que encontramos em Casilino 900, queriam afirmar uma ideia política – “temos direito a uma casa” – e nós decidimos funcionar como um meio para ajudá-los a dizer isso. Mesmo que isso fosse completamente contraditório tanto com relação ao nosso próprio trabalho quanto com relação a eles também...

Paola: Você poderia contar um pouco mais sobre esse caso? Porque a casa foi queimada no final...

Francesco: A casa foi queimada mas não sabemos por quem. Casilino 900 era o maior acampamento cigano na Europa com quase mil habitantes, depois de 2 anos que ficamos com eles a prefeitura começou um processo de retirá-los de lá, e aí começamos a fazer um projeto com eles para que eles pudessem ficar, no Brasil com relação às favelas isso já é claro, na África também, mas com os “Roms”[13] em Roma, não, aqui podemos retirá-los de qualquer lugar em qualquer momento para os colocamos em “campos de concentração”... Então o que queríamos era chamar atenção da opinião pública e tentar de fazer um projeto de Slum upgrading sobre esse acampamento, o prefeito estava de acordo, a Universidade pagou a casa, conseguimos construir uma forma de fazer um projeto junto com os ciganos, mas depois tudo complicou com o racismo dos habitantes do entorno, foram criadas barreiras enormes sobre isso. Porque podemos aceitar nômades em barracos por 40 anos, mas não podemos aceitar nômades que constroem casas ao lado da minha...
Paola: Para terminar, queria voltar a uma questão que você não respondeu: se o grupo Stalker existe ainda ou não. Tinha perguntado sobre a relação entre Stalker, Osservatorio Nomade e Laboratorio Arti Civiche...

Francesco: São três estapas de um mesmo esquema. Stalker a partir do projeto de Campo Boario construiu em torno de si uma rede com vários outros grupos de artistas e pesquisadores que já tínhamos sua própria identidade e não queriam serem chamados de Stalker e aí chamamos essa rede de Osservatorio Nomade. Entre o projeto de Campo Boario e o projeto com os Roms, fizemos o projeto Corviale, Egnatia, vários outros, Osservatorio Nomade era uma grande máquina que se movimentava junto, com vários outros grupos e pessoas ligadas, uma grande network, Alessia de Biase e Piero Zanini (hoje pesquisadores do LAA de Paris) também participaram, por exemplo, depois com o projeto dos “Roms”, era só eu e Lorenzo, os outros não quiseram participar, ficamos só nós, nesse projeto estávamos como num pântano, um tipo de areia movediça, e depois eu tinha já um pequeno grupo de ex-estudantes com quem eu já me sentia melhor do que com toda essa “Stalkerização”... Eu não sei bem... Acho normal querer mudar após 20 anos... Eu diria então que Stalker já não existe da forma que o conhecemos, eu diria que eu, Lorenzo e Aldo, carregamos, cada um de nós, o espírito de Stalker conosco, e que é com isso que fazemos outras coisas. Lorenzo fez a Primavera romana e agora faz a Stalker walking school, Aldo fez um museu de Arte Relacional, que na verdade não é um museu... Agora mesmo tem uma exposição Stalker em Roma, com o Tour de Roma, o manifesto, o mapa e tudo mais, nós nos vimos e décimos juntos como expor mas nós não queremos mais fazer coisas juntos. Mas cada um de sua forma continua Stalker, talvez façamos algo juntos no futuro, não sei...

Paola: O que foi Stalker então? O mito Stalker? A legenda Stalker? [risos]

Francesco: [risos] Gilles Tiberghien (professor e pesquisador, especialista do Land Art), escreveu um artigo que se chamava exatamente assim: “A verdadeira lenda de Stalker[14]. É lindo este texto...

Paola: Só para fechar a entrevista, qual seria então esta lenda Stalker?

Francesco: [fala alto e de forma bem ritmada] Stalker è vivo e lotta insieme a noi, le nostre idee non moriranno mai! (Stalker é vivo e luta conosco, nosso ideal não morrerá jamais!) [risos] Nas manifestações italianas tem um slogan assim, quando alguém morre dizemos isso: “fulano é vivo e luta conosco, nosso ideal não morrerá jamais”.






[1]  Sur Stalker/Osservatorio Nomade et la premiere marche autour de Rome: Stalker,  A Travers les Territoires Actuels / Aattraverso i Territori Attuali, Jean Michel Place, Paris 2000 ; Stalker, Stalker, capcMusée d’art Contamporaine de Bordeaux, Fage, Lyon 2004 ; Stalker.doc, CEDMA - Centro de la Deputaciòn de Malaga, estrabismos, Malaga 2008. Une grande partie inedite de l’archive de stalker est dans le site http://stalkerpedia.wordpress.com

[2] Careri se refere sobretudo às obras A Tour of the Monuments of Passaic de Smithson e A Line Made by Walking de Long, ambas de 1967.
[3] Os “jardins partagés” são espaços verdes, geralmente hortas, cultivadas por associações de moradores, que acontecem tanto de forma legal, em espaços públicos sedidos para este fim, ou espaços privados cedidos temporariamente, ou ainda podem ocorrer de forma clandestina, como alguns da organização internacional chamada “Guerrilla Gardening”. Vários coletivos de artistas e arquitetos fazem ou fizeram esse tipo de ação, o mais conhecido em Paris é o coletivo Ecobox.
[4] Careri usa o termo zona que se refere também à zona do filme Stalker, de Andrei Tarkovsky, que deu nome ao grupo. Os Stalkers, no filme de Tarkovsky, são como guias, são aqueles que sabem se mover pela zona mutante.
[5] A “Construção de situações” é a ideia chave inspiradora do próprio nome do grupo, a Internacional Situacionista. Nas definições situacionistas publicadas na revista IS 1, de 1958, está escrito na definição de situacionista: “O que se refere à teoria ou à atividade prática de uma construção de situações. Indivíduo que se dedica a construir situações. Membro da Internacional Situacionista”.
[7] Les materiaux du Corso di Arti Civiche sont visibles en http://www.articiviche.net/LAC/arti_civiche/arti_civiche.html
[8] Careri se refere ao debate ocorrido na mesa redonda “Apreensão da Cidade Contemporânea”  no encontro CORPOCIDADE 3 em abril de 2012 Salvador, quando lembrei na época que metodologia é formada de methodos e de logia (estudo), e que methodos por sua vez vinha de meta e hodos (caminho ou viagem), e que poderíamos pensá-la como estudo de diferentes caminhos, tantos quantos fossem nossos passos...
[9] Ver o artigo “Experiência errática” no número 9 desta revista, disponível em: http://www.corpocidade.dan.ufba.br/redobra/ano3/
[10] Ver o relato dessa experiência da oficina “Selva-quintal comum” no número 10 desta revista, disponível em: http://www.corpocidade.dan.ufba.br/redobra/ano3/
[11] Ocupação do edifício (ex-veterinário) do Campo Boario (ex-matadouro) iniciada em 1999 por alguns membros de Stalker com membros da comunidade kurda de Roma. O edifício foi rebatizado de Ararat, em homenagem a montanha kurda que emerge do Dilúvio. Pretendia-se “experimentar uma nova forma de espaço público contemporâneo baseado no acolhimento e na hospitalidade”, testar “a potência da relação entre atividade artística e solidariedade civil”.
Le livre sur l’experience du Campo Boario 1999-2007 est encore inedite , mais on peut decharger tout le pdf en http://stalkerpedia.wordpress.com/circles/

[12] Savorengo Ker / La Casa di tutti, casa construída de forma experimental em processo participativo pelos ciganos de Casilino 900 e os estudantes de Roma Tre, ver el film em: http://vimeo.com/20351544

[13] Forma usual de chamar os ciganos na Europa, que se refere aos Romenos (Careri em outras ocasiões disse que o correto seria usar: “Rom, Sinti, Kale, Monouches e Romanichel”, o que mostraria as diferenças entre eles). Nesta entrevista Careri misturou os termos “Roms”, ciganos e nômades, sem distinguí-los.
[14] Gilles Tiberghien, "La vraie légende de Stalker", in Vacarme, n° 28, été 2004. Republicado no catálogo da exposição Stalker em Bordeaux, CAPC-Musée d'art contemporain, Fage éd., 2004.

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